quarta-feira, setembro 03, 2008

A menina e o gato

Ainda nos tempos de explorar o bairro com a bicicleta e os amigos, a menina encontrou-se com o gato: cinco filhotes repousando no vão entre uma pedra grande de cimento e o muro. A menina logo gostou do filhote mais bonito de todos, uma gatinha negra e magra, e apressou-se em levar um leite que de tão branco tornasse maior sua escuridão. Perto da gatinha, a tigela de leite era como lua cheia em noite limpa. A gatinha foi pra casa da menina, e elas eram livres como gatos de rua (com exceção da noite, que a menina tinha de dormir, e a gata, por opção, fazia companhia).
Percebendo que, mesmo vivendo na rua a gata não ficava prenha, e que, além disso, havia nascido algo a mais entre suas patas traseiras (algo que meninas e gatas não costumam ter), a menina viu a necessidade de mudar o nome do bicho, antes feminino, pra um nome de gato macho e preto.

A menina ia crescendo junto com o gato, e os dois viviam dia e noite na rua. Ela voltava da escola e lá estava o gato despertando, assim como a menina, que logo almoçava e saía pra rua brincar. O gato ia junto, e os dois voltavam pra casa só na hora do jantar, pra depois emendar mais brincadeira até a mãe gritar: Menina! Entra pra dentro que tá tarde! E vinha primeiro o gato, seguido da menina emburrada de ter que parar com a brincadeira.

Um dia o pai da menina viajou e, quando voltou, trouxe com ele um cão. Põe-se os bichos no quintal e espera-se pra ver se podem conviver. O gato, estático. A menina, apreensiva, segura a respiração e tapa os olhos com os dedos entreabertos, esperando briga. O cão, finalmente, aproxima saltitante do gato que lhe dá uma única unhada, emburrado em seu orgulho de gato. A menina correu ver o pai levando embora o bicho no porta-malas do carro, enquanto chorava com o cão alegre no colo.

O tempo passou e a menina, que também gostou do cão, parou de crescer e começou a diminuir, até sua vida ficar do tamanho do quintal. Dava voltas com sua bicicleta pelo pequeno espaço de grama e concreto, atropelando os brinquedos pelo caminho. O cão vinha atrás, sempre alegre com a companhia. E então, alguns meses depois, o gato voltou.

Ele estava feio, sujo e muito machucado, mas feliz por ter conseguido finalmente voltar pra casa. A menina não entendeu o que tinha acontecido, mas contraiu nesse momento uma alergia a não-entendimentos e a gatos, daquelas que a respiração fica curta e o rosto deformado de coceira. O pai levou o gato a um bairro ainda mais distante e a menina e seu cão acreditaram que agora estava tudo seguro em seu quintal.

Muitos anos depois de o cão morrer e a casa ser reformada, já não havia mais quintal, nem bicho, nem menina, e apareceu uma mulher, alérgica a gatos, mas que começava a entender melhor as coisas. Ela lia muitas coisas, por conta da alergia a não entendimentos, mas não precisou de livros pra perceber que estava reencontrando seu gato preto, só que dessa vez na forma de uma gatinha branca que, por opção, se aconchegou em seu colo, ronronando. A mulher descobriu que algumas alergias, principalmente as do passado, do tipo que a gente não muda, não é boa coisa fugir. Essas alergias a gente pode aprender a conviver.

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