terça-feira, agosto 04, 2009

um infantil

Era aquela coisa. Pipa, pião, rouba-bandeira, esconde-esconde, pega-ladrão.
Com o Sol se pondo, todas crianças pra dentro jantar. Pedrinho era o primeiro a rapar o prato e pedir repetição. João Vítor choramingava até o último grão e Robson brincava com o feijão. Marina só olhava e ria. Ela era a caçula dos quatro irmãos, e não sabia da sua vida sem aquela família. Gostava de fingir que eram piratas e exploravam o quintal, e que a casa na árvore era uma nave interplanetária. Um dia eles levariam todas crianças do bairro pra passear na lua, uma por uma. Maria tinha todos os planos desenhados e muito bem guardados em um envelope branco dentro de uma caixa azul, que ficava atrás da gaveta de meias dentro do armário do seu quarto.
Uma manhã de um domingo (o melhor dia de todos, junto com o sábado), todas as crianças acordaram se sentindo diferentes. Não era dor de barriga, nem piolho, nem xixi na cama, e nem tinha caído dente. A casa era a mesma, tudo estava arrumado na mesma bagunça de sempre e até seus pais dormiam um sono de domingo de manhã. Mas as crianças não estavam mais em seus corpos - acordaram todos presos em corpos de velhos.
Nada de subir na goiabeira, correr, plantar bananeira ou pular-mula. Estavam todos cansados e irritados por não poderem fazer nada, neca de brincadeira. Decidiram, então, que devia ter reunião na pracinha pra resolver a situação. Alguém havia de fazer alguma coisa, e foram chamadas todas as crianças do bairro que estivessem na mesma condição. Apareceram, além da Marina e seus irmãos, a Maria Bia, o Tião, o André, a Melina, a Cecília e o Luisão. Atrasados, chegaram a Virgínia e o Matheus, reclamando que aqueles corpos lerdos não eram seus. Não era mole ser criança em corpo de velho, não!
A primeira idéia foi perguntar a um adulto o que fazer. Decidiram que não, que era um problema de criança e criança que teria de achar a solução. Nada de misturar pai, mãe, professor, padre ou doutor. A Melina então sugeriu que perguntassem pro tarô. O André logo protestou - Esse tal de Tarô é por acaso seu jeito de chamar seu tataravô? Já dissemos que nada de adulto, quanto mais adulto velho! Já bastam nossos corpos, esse mistério.
Mas a Marina, que era muito sabida, falou logo que não era nada disso, que ele deixasse de ser rabugento e esperasse a Melina, que por sorte morava perto da pracinha e logo buscou o tal de tarô. Era um baralho cheio de figuras estranhas, e a criançada logo misturou tudo de curiosidade. A Melina ficou triste e disse que assim não dava pra ela ler não, que precisava concentração. Depois de todos quietos, ela fechou os olhos e perguntou ao tarô - Poderoso tarô, que faremos pra voltarmos logo aos nossos corpos? O tarô respondeu com uma figura de um velho segurando um cajado iluminado. Ninguém entendeu o recado.
As crianças estavam divididas. Tião achava que era culpa de muita lição. Pedrinho sugeria que deviam tomar uma sopa de legumes que resolveria o caso, Maria Bia era do time que queria procurar uma fonte da juventude e Matheus achava que se dormissem lhes voltaria a saúde. Mas foi Robson quem teve a idéia genial - Gente, o que queremos é voltar a nossos corpos de criança, não é? Então vamos brincar.
Todos logo gemeram que não conseguiam brincar de nada naqueles corpos velhos. Robson retrucou - Vamos brincar que somos velhos, então. E foi daí que apareceu a solução.
As crianças brincaram o dia inteiro que eram velhos. A Cecília buscou o baralho pra jogarem buraco. Luisão improvisou com o bingo do seu avô, e Pedrinho e João Vítor só ficaram no dominó. Quando estavam dançando em pares, num baile com vitrola e tudo, as mães chamaram almoçar. Esquecendo da condição, correram e foi a mesma coisa de sempre. Pedrinho foi o primeiro a rapar o prato e pedir repetição. João Vítor choramingou até o último grão e Robson brincou com o feijão. Marina então percebeu que tinham voltado aos seus corpos e, feliz, agradeceu. Afinal, nada como viver num corpo que é todinho seu.

Um comentário:

ni disse...

saber-se criança que cresce e continua brincando de outras formas...